“Derramamos sangue, perdemos vidas de parentes. Alguns dos que derramaram sangue mas não morreram estão aqui. Os que foram também estão.” Sintetizando a luta dos indígenas de Raposa Serra do Sol – que durou mais de três décadas e custou 21 vidas –, seu Jacir abre oficialmente as comemorações da vitória.
O céu amanheceu esbranquiçado. Às 6h, o anel de montanhas era ainda visível; então, as brumas desceram em ritmo acelerado, cada vez mais espessas, tampando completamente a silhueta das serras. Restávamos no anel de malocas, arrancados para fora do mundo.
O Malocão da Homologação está apinhado. Preenchem-no as canções, que voam para o teto (a cobertura de palha é hipnótica, tão perfeitamente trançada, alta e à prova da chuva, que logo se torna cerrada). Somos penetrados pelo Maruwai, a defumação conduzida pela mãe de seu Jacir. Maruwai “era um pajé indígena que, depois de morto, se transformou em madeira”, informa o site do Conselho Indígena de Roraima. “Usamos sua resina para fazer a defumação para chamar saúde e união.”
Já chegaram para a festa índios de outros estados, e também da Venezuela e da Guiana. Em suas falas, reivindicam Raposa Serra do Sol como exemplo para os processos de luta de outros povos, ao mesmo tempo em que pedem solidariedade aos parentes nas situações mais graves.
O malocão tem um expediente fantástico: o de ter paredes invisíveis. Explico-me. Trata-se de uma grande estrutura – uma cobertura cônica de palha, que flutua sobre o chão de cimento cru, apoiada apenas em estacas de madeira. Mas o espaço vazio entre coluna e coluna tem a propriedade de nos manter juntos de um modo que não teriam o barro ou a palha.
Formamos anéis concêntricos e, manhã afora, participamos da cerimônia. Os tuxauas informam a comunidade que representam, o número de “pais de famílias” e de “populações” – aqui, sinônimo de “habitantes”. Se a diretriz fosse evitar o enfadonho, o prolongado, seria diferente. Mas aqui o critério é a minúcia: há que se convocar e saudar a todas e todos que chegam. Cada entidade, aldeia, região, etnia. E, assim, a lacuna da música é preenchida, a cada momento, por um nome: “Benvindo, ( ), benvindo, em nossa luta sempre contamos contigo, benvindo! Seja benvindo à nossa região, ao nosso Malocão da Homologação, seja benvindo a nossa região, ao nosso Malocão da Homologação”.
Quando convocados pela canção, os pequenos grupos devem, desde fora, furar os anéis de gente, atravessar a maloca em toda sua extensão e subir ao palco. Ali, cada um terá oportunidade de dizer algumas palavras. Há mensagens das mais comovidas – e comoventes. Em seu turno, Pierlângela lembra das “mulheres por trás da conquista, na cozinha”; Lea chora, pede aos parentes que a compreendam: não está mais na luta local, porque abraçou a luta em âmbito nacional. Na minha vez, debato-me com uma só questão: como demonstrar que a única palavra a ser proferida então – obrigada – não é retórica?
As saias das moças se agitam no caminhar e, quando muitas o fazem ao mesmo tempo, do chocar das lágrimas-de-nossa-senhora (que eu conhecia como capim-rosário) e canutilhos de madeira nasce um som gêmeo da chuva. É grande a variedade de roupas e adereços, de pinturas. Vestes são brinquedos: lá pelas tantas, várias crianças estão entretidas, cabeças baixas, em trançar as palhas das saias; há ainda as que brincam com as contas das roupas umas das outras. Duas meninas, por sua vez, jogam pega-pega, entre as pilastras do malocão.
Então algo começa lá fora – como nouvelle vague ou neo-realismo, quando a ação não espera a câmera. Já não chove, as montanhas retornam aos poucos e os Yanomami vêm dançando e gritando desde o centro do terreiro: chega a sua vez de serem recebidos no malocão.
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Ontem, foi uma amostra de fotografia; hoje, é de texto.
É verdade quando digo que estou digerindo as experiências na Raposa Serra do Sol e tentando — o máximo possível, que, infelizmente, será muito pouco demais — refletir nos relatos o que foi a experiência. Se conseguisse engravidá-los de Raposa…
Mas, enfim, o que veio acima é uma parte desse texto-diário que estou construindo. Não é o início, já que sempre escrevo fora de ordem. Como esse texto maior virá, não tive preocupação, neste momento, de apresentar as pessoas, as entidades, etnias, o espaço. Isso virá, está vindo, em um ritmo todo próprio.