Archive for maio \31\-03:00 2010

Alegria, alegria

31/05/2010

Hoje acordei bem mais cedo do que precisava, de modo que decidi começar o dia pelas notícias — café com leite e meias.

Começo pela espionagem ao MST durante o governo Sarney, passando pela cândida entrevista do ex-presidente — quem, eu?, de nada sei. Então há Gaza e o ataque israelense — o todo mundo cale a boca em hebraico que se ouviu no barco me devolve à sequência-pesadelo do avião em O avesso da vida, do Philip Roth — livro do qual nem gosto tanto assim, mas que me vem de pronto, e, com ele, o mal estar.

Daí passo às repercussões em cima da fala do sempre imbecil Serra, sobre a Bolívia. E sua tréplica — proferida, aliás, num encontro em Cuiabá (simbólico) sobre investimentos no agronegócio, setor por ele chamado de “âncora verde”. Maravilha. Promete, entre outras cositas, a renegociação de dívidas agrícolas. Bem, um dos nomes cotados pelo DEM para a vice-presidência do rapaz é a musa ruralista-fascista, Katia Abreu.

A situação eleitoral na Colômbia e terminamos com a taxa assombrosa de feminicídios na América Central. Esta vale a pena ler, mas preparados para o horror.

No Plano, com olhos de Sobradinho

30/05/2010

Ontem fui a Sobradinho pela primeira vez. O sol prestes a se pôr deixava o ar turvo, rosado. À nossa frente, montanhas impensadas e um grande chapadão. Gosto de me deparar com algo que não imaginava estar posto aí. À esquerda, montanhas verdes escalavradas, úmidas e tão mais próximas das minhas paisagens íntimas que o cerrado. (Gosto e me atiro em direção ao cerrado, vejam bem, mas me aquieto no colo dessas montanhas em verde escuro.)

A ampliação da estrada — terra vermelha assentada — ameaça tomar tudo à volta. E são montes de condomínimos e paradas (ou pontos, na minha língua-mãe) de ônibus solitárias na poeira.

Era a festa de amigos de amigos — um casal que espera a primeira filha. Sobre a casa dos pais do menino, erguem uma casa para si. Um monte de cimento; um monte de areia. O chá de panelas era também festa junina. As crianças correm a noite inteira; os cachorros, bonitinhos que só, pedem com os olhos; a casa é muito grande — grandes o varandão e também o quintal — e lhe falta o acabamento. Sem mais nem quê, lembro com afeto (!) da minha cidade renegada, minha (?) Guarulhos feiosa-coitadinha.

Gosto dessas panelas muito grandes; de colher o quentão com a concha; da não preocupação com a praticidade (ao inferno com o “ai, gente, vamos pensar, pra festa junina, em pratos que não sujem muito?”); da falta de cálculo, já que todos comem, muito e bem, e sempre sobra. Por se gostar de preparar e oferecer. Para mim, aí a definição de festa junina.

Concorrem para o estar bem, o horizonte de montanhas, minha primeira noite de verdadeiro frio em Brasília (esfregar as mãos uma contra a outra e chegar mais perto da churrasqueira — cheiro de brasa e de friagem), numa casa de esquina (ênfase para “casa” e “esquina”), e o quão acolhedoras são as pessoas.

Quando me despeço da menina que mora ali do lado, da qual me aproximei (tornar-se próximo, chegar-se a) por meio de uma conversa bacana — pessoal, inteligente e simples –, recebo um abraço de valor. Então voltamos ao Plano e, viva, vou em companhia de gente que é amiga ou pode vir a ser (justamente por comungar do espírito dessa festa para onde me levaram). Pegamos o final d’As bacantes, na tenda provisória do Oficina, e show de blues no gramado da Funarte. É divertido, sim. Mas a merda é que, embaixo da capa de Brasília, invariavelmente vejo um rabo não-humano.

(Ou… a verdade é que já estou com o saco muito cheio do Plano Piloto — onde tudo, ao menos tudo que possa pagar por, encaixa sem sobressalto — ao inferno também com os encaixes.)

Em desencanto

29/05/2010

Chego em casa depois do trabalho. Dia melancólico; praguejando — “o jornal atrasou de novo!” –, encontro um cartão na caixa do correio: “Cultura racional: o verdadeiro conhecimento de recuperação e salvação eterna de toda a humanidade”. É, eles não ficam só no centro de São Paulo ou na vivência da ECA-USP; vêm até a minha casa. E tem site e telefone, caso eu queira saber mais sobre o universo em desencanto. Pra já ir me iniciando, sou brindada, no verso do cartão, com uma frase de autoria do sr. Racional Superior. Tão mais iluminada, esqueço dos putos do jornal que esqueceram de mim. Certo, então.

A casa é o chapéu

25/05/2010

Sempre há mais um dito machista para somar ao repertório. Este, eu leio na transcrição de um seminário de 2007, relatado por uma liderança quilombola, do Maranhão: “Os homens foram educados para dizer que a mulher tem de ficar na cozinha, que a mulher tem de ficar na casa, e que a casa do homem é o chapéu”.

Parindo o diário de Raposa Serra do Sol

25/05/2010

“Derramamos sangue, perdemos vidas de parentes. Alguns dos que derramaram sangue mas não morreram estão aqui. Os que foram também estão.” Sintetizando a luta dos indígenas de Raposa Serra do Sol – que durou mais de três décadas e custou 21 vidas –, seu Jacir abre oficialmente as comemorações da vitória.

O céu amanheceu esbranquiçado. Às 6h, o anel de montanhas era ainda visível; então, as brumas desceram em ritmo acelerado, cada vez mais espessas, tampando completamente a silhueta das serras. Restávamos no anel de malocas, arrancados para fora do mundo.

O Malocão da Homologação está apinhado. Preenchem-no as canções, que voam para o teto (a cobertura de palha é hipnótica, tão perfeitamente trançada, alta e à prova da chuva, que logo se torna cerrada). Somos penetrados pelo Maruwai, a defumação conduzida pela mãe de seu Jacir. Maruwai “era um pajé indígena que, depois de morto, se transformou em madeira”, informa o site do Conselho Indígena de Roraima. “Usamos sua resina para fazer a defumação para chamar saúde e união.”

Já chegaram para a festa índios de outros estados, e também da Venezuela e da Guiana. Em suas falas, reivindicam Raposa Serra do Sol como exemplo para os processos de luta de outros povos, ao mesmo tempo em que pedem solidariedade aos parentes nas situações mais graves.

O malocão tem um expediente fantástico: o de ter paredes invisíveis. Explico-me. Trata-se de uma grande estrutura – uma cobertura cônica de palha, que flutua sobre o chão de cimento cru, apoiada apenas em estacas de madeira. Mas o espaço vazio entre coluna e coluna tem a propriedade de nos manter juntos de um modo que não teriam o barro ou a palha.

Formamos anéis concêntricos e, manhã afora, participamos da cerimônia. Os tuxauas informam a comunidade que representam, o número de “pais de famílias” e de “populações” – aqui, sinônimo de “habitantes”. Se a diretriz fosse evitar o enfadonho, o prolongado, seria diferente. Mas aqui o critério é a minúcia: há que se convocar e saudar a todas e todos que chegam. Cada entidade, aldeia, região, etnia. E, assim, a lacuna da música é preenchida, a cada momento, por um nome: “Benvindo, ( ), benvindo, em nossa luta sempre contamos contigo, benvindo! Seja benvindo à nossa região, ao nosso Malocão da Homologação, seja benvindo a nossa região, ao nosso Malocão da Homologação”.

Quando convocados pela canção, os pequenos grupos devem, desde fora, furar os anéis de gente, atravessar a maloca em toda sua extensão e subir ao palco. Ali, cada um terá oportunidade de dizer algumas palavras. Há mensagens das mais comovidas – e comoventes. Em seu turno, Pierlângela lembra das “mulheres por trás da conquista, na cozinha”; Lea chora, pede aos parentes que a compreendam: não está mais na luta local, porque abraçou a luta em âmbito nacional. Na minha vez, debato-me com uma só questão: como demonstrar que a única palavra a ser proferida então – obrigada – não é retórica?

As saias das moças se agitam no caminhar e, quando muitas o fazem ao mesmo tempo, do chocar das lágrimas-de-nossa-senhora (que eu conhecia como capim-rosário) e canutilhos de madeira nasce um som gêmeo da chuva. É grande a variedade de roupas e adereços, de pinturas. Vestes são brinquedos: lá pelas tantas, várias crianças estão entretidas, cabeças baixas, em trançar as palhas das saias; há ainda as que brincam com as contas das roupas umas das outras. Duas meninas, por sua vez, jogam pega-pega, entre as pilastras do malocão.

Então algo começa lá fora – como nouvelle vague ou neo-realismo, quando a ação não espera a câmera. Já não chove, as montanhas retornam aos poucos e os Yanomami vêm dançando e gritando desde o centro do terreiro: chega a sua vez de serem recebidos no malocão.

***
Ontem, foi uma amostra de fotografia; hoje, é de texto.
É verdade quando digo que estou digerindo as experiências na Raposa Serra do Sol e tentando — o máximo possível, que, infelizmente, será muito pouco demais — refletir nos relatos o que foi a experiência. Se conseguisse engravidá-los de Raposa…
Mas, enfim, o que veio acima é uma parte desse texto-diário que estou construindo. Não é o início, já que sempre escrevo fora de ordem. Como esse texto maior virá, não tive preocupação, neste momento, de apresentar as pessoas, as entidades, etnias, o espaço. Isso virá, está vindo, em um ritmo todo próprio.

Amostra

24/05/2010

Na Raposa Serra do Sol | Aldeia Maturuca, 19 abr. 2010 | Por Daniela Alarcon

Se continuar disciplinada, em breve terei as fotos da Raposa Serra do Sol organizadas para compartilhar.

Lucros fictícios, feminilidade, Thatcher

21/05/2010

Noite de debate na UnB. O palestrante queria se referir à Margaret Thatcher e esqueceu seu nome; a audiência deu a dica. “Isso, aquela lindeza, simpática e feminina.”

Aí eu me incomodei.

Claro que eu seria alvejada pelo público se trouxesse, para a discussão sobre lucros fictícios, um debate sobre o conceito de feminilidade — o montão de subentendidos na fala do economista e como a não correspondência a seu padrão imaginado de feminino era, para ele, um defeito.

Definitivamente, a Thatcher pode morrer chafurdando na própria bile. Bateria palmas. Mas confesso que a minha capacidade — já desde o início reduzida — de transitar com segurança pelo economiquês despencou depois que esse senhor (que iniciou com o protocolar “boa noite a todas e todos”) passou a gozar da minha má vontade.

(O triste é que, a certa altura, quando meu mau humor se dissipou, eu seguia entendendo, sei lá, 20%… com sorte.)

Pedagogia

16/05/2010

No ônibus. O vô (camiseta do Botafogo e bafo de cerveja) leva o neto de 8 anos de volta pra casa. “Tá na hora de descer. Você não quer descer? Vai me dizer que é flamenguista? É fla-men-guis-ta???”. Menino encabulado. “Num é flamenguista, né. Sua mãe não tá em zona… Flamenguista é tudo vagabundo, filho.”

La bici!

15/05/2010

Confirmado: minha bicicleta já está no porta-malas do carro para amanhã cedinho iniciar sua jornada a Brasília. Bora pro bar comemorar!

Puta que pariu

15/05/2010

Que assim é choro certo na tarde de sábado ensolarada e morninha. Porra, Zitarrosa, precisava ser um criador de imagens tão preciso?
* Para ouvir (num daqueles vídeos com fotos, fazer o quê): a parte 1 e a parte 2.